quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
Amor à sátira
O humor é uma arma de arremesso, é agressão para diversão.
A sátira é feita de humor.
A sátira é de quem a produz também sobre si mesmo.
Na sátira imita-se a realidade, distorcendo-a, falseando-a.
Satiriza-se um político, um clérigo, um poeta, colocando-lhes
elementos insólitos no corpo, na roupa, nas palavras e nos tiques.
A sátira destrói – ou valoriza, glorificando –
uma pessoa, uma personagem, um grupo, uma corrente sanguínea.
A sátira, escrita ou representada, é espectáculo.
O riso é uma forma de agressão, por isso no riso se mostram os
dentes, com destaque para os incisivos, arma incorporada para
morder e matar a presa. Ou para defesa.
Há macacos que, por medo, riem. A ameaça dos cães rosnando é um
riso.
A sátira é a criação de uma segunda realidade, que começa
dependente do objecto satirizado e depois se autonomiza.
Há mecanismos fisiológicos que provocam alívio e bem-estar pela
descarga de adrenalina própria do acto hepático de rir.
E também nas situações angustiantes: um sketch do Mr. Bean é
inquietante e provoca ansiedade, pois há sempre uma derrocada pelo
falhanço e vigarice, depois ardilosamente compensados, e um
sofrimento em cadeia. O que alivia é um sucesso final conseguido
- expectável – do protagonista.
Tal como acontece com os clássicos Beny Hill ou Monty Python.
Com eles há uma sensação de perigo iminente, é o cómico como
reverso da medalha do trágico: veja-se, por exemplo, a velha série
televisiva Alô, Alô, com a guerra em pano de fundo e o risco da
«Resistência» ser apanhada.
Também o próprio Chaplin está sempre em perigo, a qualquer
momento pode cair, ser preso, espancado, ficar desempregado ou
perder o amor.
Outro exemplo de agressão contra a ortodoxia é a cena hilariante e
trágica – emblemática, esta - dos Monty Python: Ministery of silly
walks. Com o andar desengonçado de todas as personagens do
sketch tudo se vai partir, desfazer - o ministério, as pernas, as
palavras, os gestos ou o chá que se desmorona com a secretária que o
serve.
O maior riso é provocado pelo alívio de ver nos outros aquilo que
queremos que não nos aconteça, por exemplo, uma queda aparatosa,
que provoca riso, não apenas no mundo artístico, mas também na
crueldade quotidiana.
Esconjura-se o mal tal como se esconjura a morte, «foi o outro que
morreu, não eu», o que por vezes origina grupinhos de riso e
anedotas privadas em velório de funeral.
A poesia satírica tem alguns pontos de contacto com estas situações,
quer no tradicional escárnio, quer nos comportamentos das
personagens-tipo-alvo. Ou nos tipos aperaltados de Nicolau
Tolentino «os outros é que são párias ignóbeis, não eu poeta
(ou também «eu» pela parte que me toca?).
Ó Roque, com franqueza:
você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O'Neill! E ... as varizes?
Quem tem varizes que o impedem de viajar é o Roque, não o
O’Neill, a quem apesar da ternura melancólica não se nega laivos de
crueldade fina: «Groselha na esplanada , bebe a velha»
quarta-feira, 1 de março de 2023
O Jorge Sequerra
Faz hoje sete anos que o actor Jorge Sequerra nos deixou.
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Entrevista à Revista Eufeme
A poesia é algo de intrigante e até misterioso. A sua existência é muito antiga e desde sempre existiu dúvidas quanto à sua própria definição. Algumas questões costumam ser pertinentes, tais como:
1.
O que é poesia?
2. Para que serve a poesia?
3. Será que
só alguns podem ou conseguem ser poetas?
Quem melhor do que os poetas para definir poesia? Talvez possam não ser as explicações exactas sobre o tema, porém, são sentimentos, desassossegos e também misteriosas afirmações sobre a escrita poética que fascina o homem.
Falei com o poeta António Ferra sobre este tema:
Quando
me sinto atrapalhado para explicar uma coisa, vou à origem da
palavra.
Neste caso, por mais voltas que dê, chego sempre ao
acto da criação — poesis.
Não
vejo a poesia, a palavra poética, como uma arte final.
Nasceu
com a música, com o ritmo, com a cadência de espadeirar o linho, de
perseguir as aves, de caminhar desbravando caminhos.
Por isso,
passados estes milhares de anos, não dissocio a criação poética
da música e do corpo.
Para mim, a poesia é dança numa
concepção muito primitiva de movimentos vocais.
A poesia é
universal, e essa universalidade não lhe vem das línguas divididas
pela implosão de uma torre de Babel.
Vem de “um mover dos
olhos” que nos leva a voar pelos céus criados na poesis.
2.
Para que serve a poesia?
Também
“é para comer”, como dizia a poeta. Mas serve ainda para
alimentar os que residem fora de nós, porque o acto poético é
sempre um eu-tu a
preencher o vazio da fome. Se a palavra não servir para me
transformar, a mim e ao outro, então não vale a pena o fingimento
poético. Ficam apenas malabaristas de circo, porque se aniquila a
liberdade criativa, o baloiçar arriscado no trapézio.
A poesia
serve para acordar a liberdade adormecida dentro de nós, serve para
deslaçar os nós que nos atam à palavra e se vai gastando com uso,
correndo o risco de deixar de significar por falta de destino. A
poesia serve como escola e escala de opções. De mudarmos pelo
auto-conhecimento, e de exibir ao outro a liberdade de mudar. Ou não.
A poesia serve sempre como exercício de liberdade na procura da
verdade. Ou daquilo que cada um pensa ser verdade ao pensar a
liberdade.
3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?
A
resposta mais simples seria dizer as vulgaridades:
todos podem
ser poetas
a inspiração é irmã do trabalho diário
lambam-se
os versos como a ursa lambe os filhos,
(como dizia Sá de
Miranda, pelo seu lado de poeta artífice)
A
resposta à questão, prende-se com a relativização das coisas e
dos object/os (ivos). Não existe um poeta, existem poetas, de maior
ou menor dimensão, julgados e avaliados por parâmetros instituídos
pelos poderes — do saber, da qualidade sociopoeticamente aceite, do
dito bom-senso, do dito bom-gosto.
Não basta um poetastro
sentar-se na esplanada e dizer que lhe dói a unha do pé porque uma
pomba diáfana lhe entornou ice-tea nas calças.
Ou outro, que
esgravata o absoluto, o sentido da vida, o silêncio de deus.
Por
outras palavras mais comezinhas:
há
para aí gente que não nasceu para a coisa
e outros que sim,
nasceram poetas inspirados, mas às vezes falta-lhes
trabalhinho
de sapa, garimpa de sílabas,
outros trabalham de sol a sol, mas
falta-lhes a centelha.
domingo, 5 de dezembro de 2021
FUMO (plaquete, 2022)
sábado, 4 de dezembro de 2021
de lito que cometi
Mensagens de recepção do «de lito». Os exemplares seguiram por correio postal normalizado, como passou a ser habitual nestas plaquetes que envio aos amigos.
Na falta da happy hour que nos traga o zelo necessário à sabedoria
de roubar versos, resta saber esperar pelo estrondo que fará da
vibração das brocas uma harmoniosa melodia.
Entretanto…
delituosamente gratos pelo 46º que nos
coube.
(CS e M)
Caro Amigo António
Ferra
Ninguém me tem dirigido desde há uns
bons tempos uma carta pessoal a não ser tu. Coisa preciosa,
estimável e para manter! É um grato prazer receber uma cartinha
tua. Neste verão também dirigi várias cartas em papel e via
correio. Abri o envelope e li «delito» e lembrei-me logo do
«de litro» do Fernando Pessoa. Depois pensei no «lito» (pedra,
calhau) e até em “litografia”. Comecei a ler e vislumbrei
situações da nossa vida social que, metaforicamente, poderão
surgir dos versos: a sereia urbana que foge aos impostos, a carinha
laroca a aldrabar-nos, a funcionária a arejar a marosca
por um motivo inconfessável, traições por todo o lado (de Braga a
Copenhaga), … E também – em leitura sobreposta – podemos
vislumbrar um quotidiano que nos surpreende. Portanto, crítica
social contundente nestes dias de Covid-19 e um quotidiano
que nos envolve completamente.
(ACS)
Acabo de receber com muita alegria o seu objecto. Chamo-lhe assim em homenagem ao Cruzeiro Seixas, para quem um livro não era nada menos do que um "objecto".
Palavras fortes as suas, em que me fica a ecoar o seu verso quase final "fontes malvadas de pesadelo".
(ACF)
Como quem manda simplesmente um recado, e de forma quase clandestina, António Ferra continua a surpreender-nos com pequenos momentos em que o bom gosto, aliado a uma refinada moldura, se manifesta com precisão e argúcia. O delito fica assim sem possível punição porque a certeira metáfora
a derruba e engrandece.
(LC)