sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Para quê?

 

Porque se escreve?


Por necessidade de gritar a existência.


Escreve-se para negar a morte.


Escreve-se para dizer aos outros que pensamos a vida e a 


morte.


Escreve-se por coscuvilhice, relatando o que outros fazem, 


como vivem,


como respiram, como comem, como matam e como amam.


Escreve-se para exibir a própria chaga, 


«olha-me como eu sofro,


aliviem a minha dor com a vossa piedade».




Escreve-se por vaidade, por narcisismo insano, ansiando 


pela glória.



Uma coisa é escrever, outra é tornar público 


o que se escreve.


Mesmo que seja apenas para leitores únicos, 


aqueles que se amam, aqueles que se odeiam 


e os outros assim-assim.



Hoje há cada vez mais editoras que cobram dinheiro aos 


autores, tirando partido do narcisismo


escriturário. Vendem-lhes impressão, tinta e a ilusão da 


revelação do génio escondido.


Todos os escritores se julgam génios não reconhecidos


e insistem infinitamente na escrita para demonstrar a sua 


genialidade.



E há cursos que ensinam a escrever, 


para que um não-escritor se torne escritor


através de um kit de escrita.





Nas outras artes não será tanto assim.


Um artista plástico não privilegia a palavras,


constrói imagens onde a batota, se a houver, é mais 


facilmente denunciada.


Um músico, idem, assim como um realizador de cinema.



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

IMPROVISO

 


Há gente que escreve diários de improviso.

O improviso é o sopro do acaso.


O que é o acaso?

É indefinível.


O improviso requer treino continuado,

desde a ciência, à performance dramática,

à expressão plástica, à escrita esferográfica.

Proporciona a liberdade.


O que é a liberdade?

É indefinível.


O autor da manifestação improvisada constata que foi levado

por caminhos de que ele próprio não suspeitava,

da baixa protopombalina a paço de arcos do triunfo.

Improvisar tem sempre uma parte em que se parte do nada

e se arrisca o crédito ou descrédito do controleiro de bairro


O que é o improviso?

É indefinível.


Eu não posso improvisar um poema ou texto poético

se não tiver a rede para suportar uma possível queda

ou uma vara flexível para me equilibrar no arame tirante

neste circo ambulante onde performa o poeta errante.


Não posso escrever sobre o quotidiano se não tiver a consciência

da necessidade de o sustentar numa dimensão universal.


Um ser desumano pode não querer ser artista,

mas pode ser artista sem ter consciência.

(desculpe, foi sem-querer)


O que é a arte?

É indefinível.


Estou farto desta missão da qual peço a demissão.

(indeferido)


Há gente que escreve diários.

Ainda bem, têm sempre um motivo para o texto escrito.

É fácil,

é apenas descrever o que vai acontecendo, ram-ram no gerúndio.

Mas os diários não são arte,

embora às vezes possam parecer, mas aí já não é diário, diário íntimo.

E arte não é íntima, mas parece.

O diário é o verdadeiro lugar da mentira,

ninguém confessa a si próprio ou aos outros,

a autenticidade dos acontecimentos.

(«lier», como dizia Tennesse Williams)


Diário:

hoje, quando me levantei, senti tonturas e uma dor contínua no pescoço,

depois tomei o pequeno almoço, café da Colômbia e pão com manteiga de amendoim.

Fumei dois cigarros light enquanto lia as notícias.

Saí para a rua, as tonturas passaram, já nem me lembro se tinha ou não a dor no pescoço.


O que é uma dor no pescoço?

É indefinível.


O drama importuno está na escassez da energia.

Porque foi sugada até ao último lume sem se imaginar

a morte da criação.

A sincronização das heranças é que subleva a incapacidade

de produzir os bens mais essenciais da humanidade -

o plancton da alimentação física e psicológica.


Há gente que escreve diários.

Quando o Gonçalo me disse que tinha chegado ao fim da linha,

que tinha esgotado a alma até à última molécula,

sabia bem que já não tinha capacidade para improvisar.

E ficou-se por uma letargia galopante, até ao silêncio total.

(os sapatos já nem lhe serviam)


A escrita criadora devia ser obrigatória,

de tal modo que se pudesse confundir com a escrita pragmática e funcional.

A escrita energética é uma actividade burocrática só combatível através do improviso.


O improviso surge-me quando tropeço na lógica,

estende-se a toda a matemática humana desde um tal de Mileto.

(Θαλής ὁ Μιλήσιος)

Neste momento priveligio a expressão escrita, plástica e performativa.

Todas residem no corpo e centram-se nos movimentos da mão,

(como dizia Ernesto de Melo e Castro, cito: «quem máquina não tem à mão se vem»)

e da voz, também outra parte do corpo.


Este movimento é abrangente, enraíza-se em toda a erupção criativa,

uma espécie de magma absurdo da angústia

(eu acrescentaria existencial, à maneira de Sartre)


Há gente que escreve diários.

O Gonçalo relatou-me os últimos movimentos da mão,

quando o improviso se lhe morrera, antecipando a sua própria morte.

Contou-me também as diletâncias da juventude

onde improvisava o amor, a ira e a gula.

O mais difícil é inventar, aí nem o improviso vale.


O que é inventar?

É indefinível.