quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Reflexões sobre a criação poética





1.
Na escrita o difícil é integrar toda a experiência, factos, vivências e medir-lhes o significado.
Como sei se são relevantes, como dar o salto ou encontrar o caminho entre a sinceridade e o confessionalismo?
Outra questão: parar a corrente de consciência, uma vez que aquilo de que me lembro agora é ultrapassado, momentos depois, por outros pensamentos. Não me refiro a relatos de memórias, mas à valorização do presente, ou então a memórias muito recentes.
Por vezes interrogo-me se terei tido uma vida suficientemente intensa que mereça a passagem para o papel. Depois vem a questão do destinatário, que até posso ser eu próprio. De facto, o primeiro destinatário sou eu e só depois poderei pensar no outro fora de mim.
Outra questão é o pudor de mim próprio, que a ficção acaba por solucionar nas terceiras pessoas. A invenção é o processo mais defensivo e uma escrita defensiva não tem interesse nenhum, quer para mim quer para o outro.
Como seleccionar o presente como conteúdo?
Tenho lido escritos em que os relatos pessoais por si só são literatura. Mas não é a literatura que agora me interessa, interessa-me a escrita como documento significador.
A consciência da minha limitação é enorme, devido aos factos que apontei. A minha relação com a escrita, a palavra escrita, é a única significação intelectual da vida, intelectual no sentido de inteligir.
Houve alturas, ainda não há muito tempo, em que o uso da carta, confessional e utilitária, era literatura, sem ter sido pensada ou programada para isso. Embora haja na carta sempre uma ideia de posteridade. Estou a pensar nas cartas do tempo do Luiz Pacheco e do Cesariny, e tantos outros, Virgílio Martinho, Victor Silva Tavares, centrando-me agora apenas neste grupo e nesta geração. Hoje, a efemeridade do email não proporciona essa dimensão, de modo algum.
A minha dúvida é se a literatura parou, ou deixou de ser documento humano da interioridade e passe a ser apenas ficção – o exterior - com mais ou menos enquadramento histórico.
Para mim, acho que descrever o quotidiano, aquilo que observo, é fácil. Mas isso não é literatura, com mais ou menos metáfora, sentido metafórico ou imagética tecnicista. A questão maior é saber quando a mediocridade deixa de ser mediocridade e passa a ter uma dimensão universal. Porque não há literatura sem universalidade.
Escrever bem é fácil, basta «escrever bem» e observar, condicionado por tudo o que se observou. Grande parte das vezes, ou quase sempre, imitando outros, ainda que com um toque pessoal.
A observação não se situa no olhar, apenas. Situa-se no exterior através da viagem ao nosso interior para captar e plasmar os sentimentos, aflições, sofrimentos e triunfos daqueles que nos rodeiam ou que vamos encontrando. A peripécia, o pormenor do que vai acontecendo é que dá a marca da dimensão literária. 
Definir a literatura como mistério é uma abordagem que não me interessa. Embora se possa simular o mistério e deixar que isso seja o emergir do génio do escriba.
Difícil é escrever coisas muito simples, muito directas.

2.
No meio literário português, a maior intensidade criativa aparece por  meados do século passado, com a chegada dos surrealistas, depois de andarem pelos textos franceses a lerem Breton e outros.  Esta intensidade não tem significado apenas pelas suas produções, com uma nova capacidade associativa fora do real, mas pelo facto de fazerem confinar os neo-realistas ao seu próprio espaço. Esta reflexão tem pouco interesse, porque existe vasta literatura e depoimentos sobre o assunto, ou pelo menos sobre o essencial do assunto, depois de se ter editado todo um mundo de fofoquice e intriga de maior ou menor importância, todos estes escritos enquadrados num ambiente político.
A polémica e a fofoquice de hoje quase não existe, pois os escritores centram a sua afirmação através da publicação dos seus textos, movimentando-se em clubes fechados. Daquilo que eu conheço só houve um grande movimento editorial alternativo, aquele que se prende com a atitude – atitude editorial – de Victor Silva Tavares, principalmente na &etc,  e de outros que com ele comungavam, comungam,  certos princípios. Refiro-me entre outros aspectos à concepção gráfica do livro e tudo que isso implica: quem o faz e como o faz, do escritor ao editor, ao gráfico, ao paginador, ao tipógrafo-gráfico.
Mesmo assim, ainda antes do falecimento de VST, já existiam experiências consequentes de edição alternativa, baseada nos pressupostos que acabo de mencionar (talvez com a excepção da parte gráfica que, inevitavelmente, não dispensa a impressão digital, técnica não aceite pelo editor da &etc.). Algumas citadas por JME «Editoras  indie, um roteiro para livros alternativos», (artigo do Observador): Douda Correria, Do lado Esquerdo, Não-edições, Artefacto, Língua Morta, Abysmo, Parsifal, Guilhotina, entre outras das referidas citações.
Dois anos após o fim da &etc esta atitude continuou e está a solidificar-se. O próprio VST, nas edições mais recentes, já abrira as portas da rua da Emenda a escritores mais jovens com propostas bem diferentes daquelas que encheram as páginas uma meia dúzia de anos antes, mas sempre com um sentido de aposta na inovação e experimentalismo, correndo os riscos inerentes a uma eventual qualidade menor. Pressupõe-se aqui sempre uma ideia nova e revolucionária «avant la lettre». Cheia de efeitos de eterno retorno, dada a grande dificuldade de se fazer algo de novo, como sempre aconteceu. Ninguém faz nada de novo, há antes um encadeamento que aproveita as experiências e realizações anteriores. A nova poesia não é nova, antes retoma o surreal como novidade, escudando-se na descoberta de associações novas devido ao aparecimento de novos campos vocabulares. A tentativa de criar o diferente é um mérito, mas a ingenuidade das ditas novas descobertas é um demérito (e quem sou para juízos de valor?) sem a consciência de que «já foi tudo feito».
A possibilidade de inovar pode é estar associada à forma, sobretudo no que respeita a parte gráfica. Quando eu era adolescente já um tipógrafo amigo me dizia «não se escreve só com letras, escreve-se com os tipos de letra». É ingénuo também pensar que os conteúdos são separáveis do grafismo, uma área em que a inovação é possível devido ao permanente desenvolvimento tecnológico. Não se pode imaginar de outro modo a criação do surreal - ao lado da ideologia - nas produções da poesia concreta e experimental. E nem neste caso é totalmente novo, se tivermos em conta experiências de um passado que não é longínquo, como é o caso da poesia visual barroca, daquela que Ana Hatherly, na sua investigação, mostrou e demonstrou em «Claro e Escuro...». A ideologia (lembre-se que a poesia experimental foi também um processo de tornear a censura, através do enigamatismo da mensagem), a ironia e sátira aparecem também nesta práctica criativa poética em várias publicações de Alexandre O’Neill. E já há mais de vinte anos que vi poemas visuais em vídeo apresentados por E. M. Melo e Castro na Gulbenkian.
Entre nós, a maior produção situa-se em meados dos anos sessenta, pertencendo a primeira publicação sobre o tema justamente a Ana Hatherly, em artigo no Diário de Notícias, em 1959, acompanhado por uma poema seu.
De resto o experimentalismo literário formal apresenta-se aqui e ali, ao longo da história da literatura, não se circunscrevendo, no passado, apenas ao barroco nem à produção dos anos sessenta.

3.
A poesia é «fácil» de escrever, ao contrário da prosa e da ficção em prosa, embora a ideia de prosa poética venha baralhar um pouco os cânones e proporcione também um elevado grau de defesa.
A poesia permite um arcaboiço defensivo e uma comunicação por códigos intrínsecos (os idiolectos dos autores), criando o seu próprio universo, o que se vê quando emerge a identidade poética, afinal a velha expressão o estilo, de «o estilo é o próprio homem», como dizia o francês. No meu caso pessoal reconheço esse poder defensivo paralelo na expressão plástica, uma criação em que a ligação com a realidade é, sobretudo, com outra realidade. Basta ver os materiais palpávies utilizados.
A poesia é «fácil» de escrever principalmente para quem tiver intuição filosófica. Quanto à parte formal, de execução técnica, aprenda-se em livros de instruções. A ficção não necessita do sentido filosófico inerente à poesia.
Em ambos os casos é verificável, sempre, o comprometimento com o mundo, com o outro, e do escritor consigo próprio. É na abordagem filosófica que a linguagem da poesia se apoia, embora se possa chegar à dimensão filosófica através do mero exercício da linguagem, «aproveitando», por vezes, e por opção, certo automatismo mais ou menos adquirido. Apenas porque o automatismo pode partir do inconsciente, ou de uma infância, onde estes dois topos se encontram livremente e se misturam. Aqui vencem as tendências surreais, presentes em toda a poesia que se considere como tal, numa «poesis» original. Tudo resto é caldeirado pela cultura no sentido sincrónico e diacrónico.

4.
As lutas ideológicas são necessárias à arte da escrita. Ideológicas no sentido de se transformar e de se questionar o lugar de onde se parte, o lugar por onde se passa e o lugar aonde se quer chegar. Uma literatura que não se afirme por aquilo em que acredita  e por marcas diferenciadoras não é nada que valha a pena registar. Foi isto que me foi dado constatar nas chamadas tricas literárias e editoriais, sobretudo as que apareceram em meados do século passado, como acima referi, ainda que com algumas premissas ancestrais. Basta lembrar as análises a posteriori que distinguem, em última análise, os espíritos apolíneos dos dionisíacos.
Todas as teorias filosóficas, literárias e linguísticas que se têm produzido são absolutamente inúteis, ainda que isso sirva de satisfação aos produtores de análises quase sempre narcísicas, experimentando uma legítima auto-satisfação, na sua ânsia de ensinar o outro, de produzir uma pedagogia de circunstância.
A poesia, e a literatura, procura explicar – filosoficamente – o sentido da vida e tem por objectivo a imortalidade, enquanto diverte e entretém o outro nos tempos livres. Com a primazia inicial para o entretenimento, pois foi assim que começou, enquanto se comunicava com a dimensão divina, onde se situava, ou situa, a vida e a morte. É essa a grande questão.

5.
A banalidade do quotidiano, a descrição dos movimentos e dos actos sem significado aparente são também conteúdo e tema literário. A questão que se coloca é saber quando esse quotidiano, cheio de referências a lugares comuns, ganham poder comunicativo enquanto referentes. Casos há em que esse mundo da banalidade, chamemos-lhe assim, tem pretensões de atingir um valor por si só, muito longe da dimensão em que «tomar um café numa esplanada» pode ser porta de abertura para uma dimensão artística. Essa fronteira é difícil de delimitar, dependendo muito da contextualização na obra de quem a traça, o que pressupõe uma análise não apenas do texto que vale por si só, independente dos contextos e até de aspectos biográficos – isto é «estava uma manhã de chuva e eu acendi um cigarro» tem valores diferentes para um poeta «consagrado» e para um desconhecido sem obra que se conheça relevante. Pessoalmente valorizo o texto-objecto em si, independentemente do autor e da circunstância. De resto, nem todos os conteúdos coados por processos formais e artificialismos salvam o poema. Há, no entanto, um mundo da banalidade, ou da «aurea mediocritas» do que pode ser tansformado numa dimensão épica ou poética.

6.
Para dar o exemplo pessoal, quando escrevi a «Palavra Passe» tentei dar essa dimensão ao falar da «canalização» ou apelo a alguém que me ponha uma fechadura na porta. Mas, segundo me recordo, estas situações foram escritas com uma raiva interior muito intensa e posteriormente buriladas num laboratório de escrita utilizando o tal livro de instruções. O mesmo se passa com «Marias Pardas», mas neste caso ficcionei personagens, num processo que sempre me acompanhou devido às minhas ligações com o teatro, desde a escrita até à improvisação em expressão dramática. Melhor dizendo, há um sentimento dramático que se prende com certas personagens-tipo, ditas planas, o que não é o caso das personagens de «Marias Pardas», muito mais elaboradas.
Essa ficção esteve sempre presente no livro que considero com melhor acabamento e coerência, «Fugindo de todos os fogos». Aqui, curiosamente, a ficção que acho mais «pura» encontra-se no conto «O galope de Tordilho». É talvez o meu conto escrito com maior rigor. Pergunto se o sentido metafórico do cavalo a fugir do fogo em liberdade é um modo de falar de mim, embora escreva sobre um cavalo. Creio que não. Neste sentido, a selecção dos referentes é o princípio da escrita.
Sobre a auto-análise das obras produzidas, não nos esqueçamos da centopeia, que caminha naturalmente. Um dia, parou para observar o seu movimento de patas e ficou de tal maneira confundida, que tombou para o lado, perdendo a capacidade de andar.