terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Amor à sátira


 O humor é uma arma de arremesso, é agressão para diversão.

A sátira é feita de humor.

A sátira é de quem a produz também sobre si mesmo.


Na sátira imita-se a realidade, distorcendo-a, falseando-a.

Satiriza-se um político, um clérigo, um poeta, colocando-lhes

elementos insólitos no corpo, na roupa, nas palavras e nos tiques.

A sátira destrói – ou valoriza, glorificando – 

uma pessoa, uma personagem, um grupo, uma corrente sanguínea.

A sátira, escrita ou representada, é espectáculo.

O riso é uma forma de agressão, por isso no riso se mostram os

dentes, com destaque para os incisivos, arma incorporada para

morder e matar a presa. Ou para defesa.

Há macacos que, por medo, riem. A ameaça dos cães rosnando é um

riso.

A sátira é a criação de uma segunda realidade, que começa

dependente do objecto satirizado e depois se autonomiza.

Há mecanismos fisiológicos que provocam alívio e bem-estar pela

descarga de adrenalina própria do acto hepático de rir.


E também nas situações angustiantes: um sketch do Mr. Bean é

 inquietante e provoca ansiedade, pois há sempre uma derrocada pelo

falhanço e vigarice, depois ardilosamente compensados, e um

sofrimento em cadeia. O que alivia é um sucesso final conseguido

- expectável – do protagonista.

Tal como acontece com os clássicos Beny Hill ou Monty Python.

Com eles há uma sensação de perigo iminente, é o cómico como

reverso da medalha do trágico: veja-se, por exemplo, a velha série

televisiva Alô, Alô, com a guerra em pano de fundo e o risco da

«Resistência» ser apanhada.

Também o próprio Chaplin está sempre em perigo, a qualquer

momento pode cair, ser preso, espancado, ficar desempregado ou

perder o amor.

Outro exemplo de agressão contra a ortodoxia é a cena hilariante e

trágica – emblemática, esta - dos Monty Python:  Ministery of silly

 walks. Com o andar desengonçado de todas as personagens do

 sketch tudo se vai partir, desfazer - o ministério, as pernas, as

palavras, os gestos ou o chá que se desmorona com a secretária que o

serve.

O maior riso é provocado pelo alívio de ver nos outros aquilo que

 queremos que não nos aconteça, por exemplo, uma queda aparatosa,

que provoca riso, não apenas no mundo artístico, mas também na

 crueldade quotidiana.

Esconjura-se o mal tal como se esconjura a morte, «foi o outro que

morreu, não eu», o que por vezes origina grupinhos de riso e

anedotas privadas em velório de funeral.

A poesia satírica tem alguns pontos de contacto com estas situações,

quer no tradicional escárnio, quer nos comportamentos das

personagens-tipo-alvo. Ou nos tipos aperaltados de Nicolau

Tolentino «os outros é que são párias ignóbeis, não eu poeta 

(ou também «eu» pela parte que me toca?).


Ó Roque, com franqueza:

 

você nunca quis ver outros países?

- Bem queria, sr. O'Neill! E ... as varizes?

 


Quem tem varizes que o impedem de viajar é o Roque, não o

O’Neill, a quem apesar da ternura melancólica não se nega laivos de

crueldade fina: «Groselha na esplanada , bebe a velha»