quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Entrevista à Revista Eufeme


 

A poesia é algo de intrigante e até misterioso. A sua existência é muito antiga e desde sempre existiu dúvidas quanto à sua própria definição. Algumas questões costumam ser pertinentes, tais como:

1. O que é poesia?
2. Para que serve a poesia?
3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

Quem melhor do que os poetas para definir poesia? Talvez possam não ser as explicações exactas sobre o tema, porém, são sentimentos, desassossegos e também misteriosas afirmações sobre a escrita poética que fascina o homem.

Falei com o poeta António Ferra sobre este tema:

1. O que é Poesia?

Quando me sinto atrapalhado para explicar uma coisa, vou à origem da palavra.
Neste caso, por mais voltas que dê, chego sempre ao acto da criação — 
poesis.
Não vejo a poesia, a palavra poética, como uma arte final.
Nasceu com a música, com o ritmo, com a cadência de espadeirar o linho, de perseguir as aves, de caminhar desbravando caminhos.
Por isso, passados estes milhares de anos, não dissocio a criação poética da música e do corpo.
Para mim, a poesia é dança numa concepção muito primitiva de movimentos vocais.
A poesia é universal, e essa universalidade não lhe vem das línguas divididas pela implosão de uma torre de Babel.
Vem de “um mover dos olhos” que nos leva a voar pelos céus criados na 
poesis.

2. Para que serve a poesia?
Também “é para comer”, como dizia a poeta. Mas serve ainda para alimentar os que residem fora de nós, porque o acto poético é sempre um 
eu-tu a preencher o vazio da fome. Se a palavra não servir para me transformar, a mim e ao outro, então não vale a pena o fingimento poético. Ficam apenas malabaristas de circo, porque se aniquila a liberdade criativa, o baloiçar arriscado no trapézio.
A poesia serve para acordar a liberdade adormecida dentro de nós, serve para deslaçar os nós que nos atam à palavra e se vai gastando com uso, correndo o risco de deixar de significar por falta de destino. A poesia serve como escola e escala de opções. De mudarmos pelo auto-conhecimento, e de exibir ao outro a liberdade de mudar. Ou não. A poesia serve sempre como exercício de liberdade na procura da verdade. Ou daquilo que cada um pensa ser verdade ao pensar a liberdade.

3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

A resposta mais simples seria dizer as vulgaridades:
todos podem ser poetas
a inspiração é irmã do trabalho diário
lambam-se os versos como a ursa lambe os filhos,
(como dizia Sá de Miranda, pelo seu lado de poeta artífice)

A resposta à questão, prende-se com a relativização das coisas e dos object/os (ivos). Não existe um poeta, existem poetas, de maior ou menor dimensão, julgados e avaliados por parâmetros instituídos pelos poderes — do saber, da qualidade sociopoeticamente aceite, do dito bom-senso, do dito bom-gosto.
Não basta um poetastro sentar-se na esplanada e dizer que lhe dói a unha do pé porque uma pomba diáfana lhe entornou ice-tea nas calças.
Ou outro, que esgravata o absoluto, o sentido da vida, o silêncio de deus.
Por outras palavras mais comezinhas:

há para aí gente que não nasceu para a coisa
e outros que sim, nasceram poetas inspirados, mas às vezes falta-lhes
trabalhinho de sapa, garimpa de sílabas,
outros trabalham de sol a sol, mas falta-lhes a centelha.


domingo, 5 de dezembro de 2021

FUMO (plaquete, 2022)



FUMO - publicado em Novembro, 2022



    Cá chegou em boas condições o seu Fumo, em dia benfazejo.

Será que a dor do mundo encarnado no eu poético vive rodeada de incompletude , amputação, anormalidade e contrastes?
   E que padece da insensatez , da angústia dormente e da insónia diurna do mesmo eu, que, porém, prevalece sobre o gemer e o doer da gente pela junção do fumo ao fogo inicial e vivificador ?
   “ É”. 
    O conjunto afirma-se pelo que é, pela ausência e pela presença, pela acção e pela dormência , que permanece do nocturno doer . 
   Parabéns. 

M. C.

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     Cá recebi o seu "Fumo", sempre sugestivo . Temos que arranjar uma loção qualquer para fazer crescer as penas das aves e pensar em fumo de castanhas e de boas fogueiras contra o frio. Isto anda mal pelo mundo. Bem entendo a sua "ave sem penas".
 
     Abraço afectuoso
I L
 
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Caro António
Agradeço o fumo envolvendo oportunas palavras. Que sabedoria será necessário saber para olhar sem fascínio o voo arrogante dos corvos?
Abraço
C S  e M

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Caro, cá recebi na volta do correio o teu fumo, só possível a partir do teu fogo! Fumo não necessariamente negro como o corvo, até porque a toutinegra, ao contrário do que o nome faz supor, é...cinzenta! De qualquer dos modos está cá tudo: a insónia diurna e a noite a doer. Exercício difícil de síntese. (...)

M. M.

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Caríssimo Amigo,
Obrigado pela oferta da plaquete, que inclui poemas 
de grande talento literário, com surpreendentes diálogos
interiores .Parabéns!
Um abraço amigo e grato,
Fernando
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Caro António: Cheguei do Brasil e à minha espera esta o teu livro "Fumo" (Quinquagésimo quarto da ninhada). Lê-se depressa e devagar. Vê-se depressa e devagar. Li-o como um livro desencantado que fala de aves sem asas, sem penas, de voos sem rumo, da cinza do fumo e de uma noite a doer. Mas que fala também de manhã, de rio, de música e de fogo. Os dois (3?) textos são escritos por uma ave ferida que destina o seu voo ao nada, ao fumo sem fogo. Encobertos por este fumo funesto estão também as figuras da pintura. O teu livro pareceu-me escrito num caminho sem saída. Sem saída por "lá". Um livro triste que gostei de receber. Muito obrigado! Recebe um abraço sempre amigo do David.
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sábado, 4 de dezembro de 2021

de lito que cometi


Mensagens de recepção do «de lito». Os exemplares seguiram por correio postal normalizado, como passou a ser habitual nestas plaquetes que envio aos amigos.


Na falta da happy hour que nos traga o zelo necessário à sabedoria de roubar versos, resta saber esperar pelo estrondo que fará da vibração das brocas uma harmoniosa melodia.
Entretanto…
delituosamente gratos pelo 46º que nos coube. 
(CS e M)
Caro Amigo António Ferra
Ninguém me tem dirigido desde há uns bons tempos uma carta pessoal a não ser tu. Coisa preciosa, estimável e para manter! É um grato prazer receber uma cartinha tua. Neste verão também dirigi várias cartas em papel e via correio. Abri o envelope e li «delito» e lembrei-me logo do «de litro» do Fernando Pessoa. Depois pensei no «lito» (pedra, calhau) e até em “litografia”. Comecei a ler e vislumbrei situações da nossa vida social que, metaforicamente, poderão surgir dos versos: a sereia urbana que foge aos impostos, a carinha laroca a aldrabar-nos, a funcionária a arejar a marosca por um motivo inconfessável, traições por todo o lado (de Braga a Copenhaga), … E também – em leitura sobreposta – podemos vislumbrar um quotidiano que nos surpreende. Portanto, crítica social contundente nestes dias de Covid-19 e um quotidiano que nos envolve completamente. 
(ACS)
Acabo de receber com muita alegria o seu objecto. Chamo-lhe assim em homenagem ao Cruzeiro Seixas, para quem um livro não era nada menos do que um "objecto".Palavras fortes as suas, em que me fica a ecoar o seu verso quase final "fontes malvadas de pesadelo".
(ACF)

Como quem manda simplesmente um recado, e de forma quase clandestina, António Ferra continua a surpreender-nos com pequenos momentos em que o bom gosto, aliado a uma refinada moldura, se manifesta com precisão e argúcia. O delito fica  assim sem possível punição porque a certeira metáfora
a derruba e engrandece.
(LC)








sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Para quê?

 

Porque se escreve?


Por necessidade de gritar a existência.


Escreve-se para negar a morte.


Escreve-se para dizer aos outros que pensamos a vida e a 


morte.


Escreve-se por coscuvilhice, relatando o que outros fazem, 


como vivem,


como respiram, como comem, como matam e como amam.


Escreve-se para exibir a própria chaga, 


«olha-me como eu sofro,


aliviem a minha dor com a vossa piedade».




Escreve-se por vaidade, por narcisismo insano, ansiando 


pela glória.



Uma coisa é escrever, outra é tornar público 


o que se escreve.


Mesmo que seja apenas para leitores únicos, 


aqueles que se amam, aqueles que se odeiam 


e os outros assim-assim.



Hoje há cada vez mais editoras que cobram dinheiro aos 


autores, tirando partido do narcisismo


escriturário. Vendem-lhes impressão, tinta e a ilusão da 


revelação do génio escondido.


Todos os escritores se julgam génios não reconhecidos


e insistem infinitamente na escrita para demonstrar a sua 


genialidade.



E há cursos que ensinam a escrever, 


para que um não-escritor se torne escritor


através de um kit de escrita.





Nas outras artes não será tanto assim.


Um artista plástico não privilegia a palavras,


constrói imagens onde a batota, se a houver, é mais 


facilmente denunciada.


Um músico, idem, assim como um realizador de cinema.



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

IMPROVISO

 


Há gente que escreve diários de improviso.

O improviso é o sopro do acaso.


O que é o acaso?

É indefinível.


O improviso requer treino continuado,

desde a ciência, à performance dramática,

à expressão plástica, à escrita esferográfica.

Proporciona a liberdade.


O que é a liberdade?

É indefinível.


O autor da manifestação improvisada constata que foi levado

por caminhos de que ele próprio não suspeitava,

da baixa protopombalina a paço de arcos do triunfo.

Improvisar tem sempre uma parte em que se parte do nada

e se arrisca o crédito ou descrédito do controleiro de bairro


O que é o improviso?

É indefinível.


Eu não posso improvisar um poema ou texto poético

se não tiver a rede para suportar uma possível queda

ou uma vara flexível para me equilibrar no arame tirante

neste circo ambulante onde performa o poeta errante.


Não posso escrever sobre o quotidiano se não tiver a consciência

da necessidade de o sustentar numa dimensão universal.


Um ser desumano pode não querer ser artista,

mas pode ser artista sem ter consciência.

(desculpe, foi sem-querer)


O que é a arte?

É indefinível.


Estou farto desta missão da qual peço a demissão.

(indeferido)


Há gente que escreve diários.

Ainda bem, têm sempre um motivo para o texto escrito.

É fácil,

é apenas descrever o que vai acontecendo, ram-ram no gerúndio.

Mas os diários não são arte,

embora às vezes possam parecer, mas aí já não é diário, diário íntimo.

E arte não é íntima, mas parece.

O diário é o verdadeiro lugar da mentira,

ninguém confessa a si próprio ou aos outros,

a autenticidade dos acontecimentos.

(«lier», como dizia Tennesse Williams)


Diário:

hoje, quando me levantei, senti tonturas e uma dor contínua no pescoço,

depois tomei o pequeno almoço, café da Colômbia e pão com manteiga de amendoim.

Fumei dois cigarros light enquanto lia as notícias.

Saí para a rua, as tonturas passaram, já nem me lembro se tinha ou não a dor no pescoço.


O que é uma dor no pescoço?

É indefinível.


O drama importuno está na escassez da energia.

Porque foi sugada até ao último lume sem se imaginar

a morte da criação.

A sincronização das heranças é que subleva a incapacidade

de produzir os bens mais essenciais da humanidade -

o plancton da alimentação física e psicológica.


Há gente que escreve diários.

Quando o Gonçalo me disse que tinha chegado ao fim da linha,

que tinha esgotado a alma até à última molécula,

sabia bem que já não tinha capacidade para improvisar.

E ficou-se por uma letargia galopante, até ao silêncio total.

(os sapatos já nem lhe serviam)


A escrita criadora devia ser obrigatória,

de tal modo que se pudesse confundir com a escrita pragmática e funcional.

A escrita energética é uma actividade burocrática só combatível através do improviso.


O improviso surge-me quando tropeço na lógica,

estende-se a toda a matemática humana desde um tal de Mileto.

(Θαλής ὁ Μιλήσιος)

Neste momento priveligio a expressão escrita, plástica e performativa.

Todas residem no corpo e centram-se nos movimentos da mão,

(como dizia Ernesto de Melo e Castro, cito: «quem máquina não tem à mão se vem»)

e da voz, também outra parte do corpo.


Este movimento é abrangente, enraíza-se em toda a erupção criativa,

uma espécie de magma absurdo da angústia

(eu acrescentaria existencial, à maneira de Sartre)


Há gente que escreve diários.

O Gonçalo relatou-me os últimos movimentos da mão,

quando o improviso se lhe morrera, antecipando a sua própria morte.

Contou-me também as diletâncias da juventude

onde improvisava o amor, a ira e a gula.

O mais difícil é inventar, aí nem o improviso vale.


O que é inventar?

É indefinível.