segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

comunidade e cidadania























A criatividade transgressora


1. Definir conceitos

O termo comunidade pode ser dimensionado, tendo em vista um onde, um quando e um como. É, pois, necessário definir o termo comunidade em cada situação concreta em que ele é utilizado. O onde é uma localização, o quando situa-se num tempo, integra-se numa duração, o como corresponde a um processo. Em qualquer dos casos, existe um sentido de pertença colectiva, um sentido do «nós».
Há sempre um elemento unificador mais ou menos forte, ou então um emblema que se manifesta através das produções culturais ou da língua e das linguagens. As comunidades mais coesas solidificam-se numa história colectivamente elaborada (processo): a comunidade quando, de duração variável (ou “eterna”), elaborando e realaborando as regras do seu costume. E, se quisermos mesmo falar da comunidade humana, existem sinais universais resultantes das necessidades básicas e da vinculação humana – o que me liga a outro ser-humano é a qualidade de ser humano.
Se, numa função metalinguística de análise multireferencial, não forem definidos os conceitos utilizados – neste caso de comunidade – geram-se diálogos de surdos, porque não se questionou, com humildade científica, o“de que estamos a falar?”.
Criada de cima para baixo, a partir do nível institucional, ou originada pelo nível grupal, surge a organização. No primeiro nível, como uma necessidade pragmática de execução, no segundo nível, numa sequência que passa ao acto a potencialidade organizacional contida nos grupos. A organização, que pode ter uma componente comunitária, é o local onde são instituídas as regras e as funções. As organizações vocacionam-se para a eficácia, movendo-se, na sua essência, numa certa neutralidade afectiva, pois é a funcionalidade que está em causa. Se nelas se desenvolvem relações afectivas, tal facto deve-se à sua constituição por pessoas que, por vezes, desenvolvem ligações informais não ditadas pelo organograma, mas sim pelo sociograma, ou seja, a representação gráfica dos circuitos de relações e afinidades, de interesses e preferências. Uma escola, um hospital, uma direcção geral são organizações, englobando, portanto, estas duas componentes a que devemos estar atentos para qualquer situação de análise e intervenção.



















2. Comunidade escolar

Se focarmos a atenção sobre a comunidade escolar, por exemplo, vemos que ela engloba grande parte dos conceitos acima referidos, nomeadamente a cultura organizacional escolar, com o seu imaginário colectivo e os seus mitos unificadores, muitas vezes circulando de modo inconsciente.
A partir desta reflexão prévia, podemos pôr em causa a tão falada relação escola-comunidade. Pôr em causa é um possível ponto de partida da análise das relações interpessoais e das relações de poder. Sem esta análise não é possível a intervenção comunitária, numa intervenção em que o analisador - numa investigação-acção – é totalizante do campo de intervenção - “Eu, ao intervir/ analisar, modifico e transformo o objecto”. Por outras palavras, numa turma escolar não se pode analisar e intervir sobre a relação pais/ alunos/professores sem se ter em conta todo o circuito de relações e de poder(es) dentro da organização-escola, sem ter em conta a relação entre organograma e sociograma, afinal uma relação de poder/contra-poder, motor de todos os grupos, comunidades e organizações.
Numa escola que não valorize a sua história – se é que a tem – prevalece apenas a funcionalidade, o que é insuficiente para a formação de todos os que a integram, já que falta a dimensão afectiva do sociograma.


3. A “crise” e as comunidades de interesse

Nas pequenas cidades e vilas os filhos dos residentes frequentam a escola da sua área. Em situações de crise os pais juntam-se e vão à escola, tal como as populações se podem juntar para fechar ou protestar contra o funcionamento dum centro de saúde, o encerramento de uma escola, contra a ausência de um semáforo, por qualquer inquietação que ponha em causa a segurança dos filhos. É o interesse comum que os liga, pelo menos temporariamente, tendo cada uma destas “crises” um papel unificador e desencadeador da consciência comunitária. Às vezes a crise é “benéfica” para juntar as pessoas, ao fazê-las ter consciência, por exemplo, de que o bem-estar dos filhos é importante. Omitimos aqui situações inconscientes de luta pelo poder que geram conflitos ditados pela competição pais/estruturas de ensino (ou outras). Preferimos salientar aspectos mais relevantes da colaboração entre estas duas estruturas, no sentido da cooperação, com áreas definidas de competência. De qualquer modo uma identidade comunitária local pode ser, num caso destes, construída e depois preservada e desenvolvida.
Nas escolas da grande cidade a ideia transposta de escola-comunidade-sociedade é completamente artificial e já não corresponde à realidade, enquanto for tida como uma sucessão de cascas de cebola que se sobrepõem numa área geográfica. Hoje, na grande cidade, as escolas podem ser frequentadas por alunos oriundos de lugares distantes, cujos pais trabalhem na mesma área do respectivo estabelecimento de ensino, ou porque escolhem uma escola em função de uma oferta de qualidade ou de especialidade.

4. Uma referência à tecnologia e às relações sociais

O desenvolvimento tecnológico cria estilos de vida nos quais o relacionamento interpessoal se torna dispensável, porque se poupa o precioso tempo gasto nas relações de pessoa a pessoa. Com o decréscimo da participação política (na polis) e a redução do chamado círculo de amigos e relações de vizinhança, surge a impessoalidade e a desagregação social paralela à ausência do exercício da cidadania (termo para o qual, devido à sua conotação, seria necessário também uma abordagem metalinguística...). Atravessamos uma época em que cada vez mais é possível viver-se mais sozinho e as comunidades virtuais são apenas virtuais.






























5. Da série ao grupo

Na escola, o sucesso de uma comunidade de interesses não se mede pela quantidade dos participantes numa qualquer reunião, porque quantidade não é qualidade em função de um projecto que se articula em várias fases. Já ouvimos dizer «a reunião foi muito boa, estava a sala cheia de pais» ou, então, «a reunião foi decepcionante, só estavam presentes três ou quatro pais». No primeiro caso, ocorrido muitas vezes em princípio de ano lectivo, pode não haver continuidade das relações inter-pais, no âmbito educacional, devido, entre outros factores, à dificuldade de se estabelecerem relações face a face. Fica-se pela série. No segundo caso não se justifica a decepção dos educadores profissionais, uma vez que, a partir de uma reunião onde é possível um diálogo e relações interpessoais próximas, pode estabelecer-se um bom início para a criação de uma pequena comunidade educativa. Devido à condicionante grupal baseada no trinómio espaço/tempo/número de pessoas, as reuniões com elevado número de participantes proporcionam discursos predominantemente informativos e quase unidireccionais por parte da estrutura organizadora. Na reunião com número reduzido de participantes é possível o encontro, desde que não se reproduza o discurso predominantemente informativo verificado na tendência do primeiro caso (o da série), se bem que haja técnicas para a condução de reuniões de participação numerosa que podem minimizar a dificuldade de estabelecimento de relações face a face.
Um número excessivo de pessoas pode dificultar a passagem da série ao grupo. Na série, as pessoas não estão interligadas afectivamente (com carga negativa ou positiva) e a ausência de uma pessoa não é sentida como falta. No grupo, porque se vive a função totalizante das partes em relação ao todo – “em oito, eu, integrante, faço existir qualitativamente e quantitativamente o grupo (de oito)” – a ausência de um ou mais elementos é sentida como perda. O sentimento de perda do outro é um sinal evidente da existência de grupo. Pode, contudo, integrar-se um maior número de participantes em sucessivas totalizações em curso, utilizando metodologias de intervenção adequadas (que não cabem no âmbito destas reflexões).

























6. A comunidade de ser

Se, de facto, se pretende uma educação/formação para os valores e um enquadramento afectivo do ensino aprendizagem, a construção da comunidade de interesses é um pressuposto do qual se pode partir, investindo-se na criação de interacções.
As comunidades não existem feitas à partida, ali, à espera que alguém as ilumine. Excluindo as (raras) comunidades religiosas e rurais de forte tradição e identidade, as comunidades urbanas - escolares, no caso deste exemplo - podem construir-se à volta de um interesse, partindo do encontro, na relação face a face, e à volta de tarefas que correspondem a um investimento gratificante para as pessoas-participantes, construtoras dessa comunidade.
São sempre os grupos que geram as mudanças desejadas (desejáveis) e o encontro inicial entre duas pessoas pode ser um caminho para o grupo, devido ao aparecimento sequencial de um terceiro mediador totalizante (pessoa, pessoas, grupos, estruturas organizacionais...). Pressupõe-se que, mesmo com um enquadramento organizacional mínimo, as mudanças propostas através de comunidades de interesses desenvolvem um movimento de “baixo para cima”, que se confronta de modo positivo e dinâmico com as mudanças “de cima para baixo”.

7. Em quem confiar?

A identidade criada na construção de uma cultura de grupo (no nível grupal-comunitário) é a descoberta de um sentido de pertença necessário à comunicação autêntica. Sem que se fechem as portas às preferências individuais, a formação e a animação comunitária terá de ser multifacetada - daí a vantagem da participação multiprofissional - , mas com uma base comum.
Tem havido, fundamentalmente, três tendências: uma que privilegia o aspecto cultural no reconhecimento das suas produções e na criatividade expressiva; outra que privilegia a dimensão sociológica; outra, centrada no psicológico não contextualizado nos primeiros aspectos. Na complementaridade destas abordagens se situa a formação das pessoas que trabalham com pessoas, podendo, assim, ser desenvolvida, nos diversos locais, uma informalidade inicial - empática e de interajuda - nas relações de pessoa a pessoa, como ponto de partida para a construção de pequenas comunidades onde os sentimentos de solidariedade se cruzem e se confundam com a consciência cívica.
Talvez assim, através de um enquadramento teórico simples, se possam valorizar e rentabilizar as inúmeras iniciativas agregadoras que se produzem nas escolas.
O problema é que, se todos os movimentos são, logo à partida, absorvidos e encaixotados num quadro institucional e organizacional, não restará espaço para a “criatividade transgressora”. O sistema escolar pretende defender-se bem, com o pretexto da questão que se coloca a si próprio: em quem confiar?
Sabemos, porém, que se um sistema não confia nas pessoas, também não confia em si.








1 comentário:

Anónimo disse...

Os meus conhecimentos sobre psicologia aplicada, especialmente no que se referem ao ensino e a sociologia, nao me permitem criticar os escritos aqui apresentados.
No entanto quero aqui deixar um louvor por encontrar alguem que se interessa pelo assunto, atendendo que, sendo tematicos, nao trarao necessariamente ao escritor o reconhecimento populista, tantas vezes procurado por outros.

R. Laureano Silva

http://www.aviationartists.ca/mainnew.htm

See "Main Gallery" and "Special Galleries" / "Spitfire Tribute".
Ciao