Há gente que escreve diários de improviso.
O improviso é o sopro do acaso.
O que é o acaso?
É indefinível.
O improviso requer treino continuado,
desde a ciência, à performance dramática,
à expressão plástica, à escrita esferográfica.
Proporciona a liberdade.
O que é a liberdade?
É indefinível.
O autor da manifestação improvisada constata que foi levado
por caminhos de que ele próprio não suspeitava,
da baixa protopombalina a paço de arcos do triunfo.
Improvisar tem sempre uma parte em que se parte do nada
e se arrisca o crédito ou descrédito do controleiro de bairro
O que é o improviso?
É indefinível.
Eu não posso improvisar um poema ou texto poético
se não tiver a rede para suportar uma possível queda
ou uma vara flexível para me equilibrar no arame tirante
neste circo ambulante onde performa o poeta errante.
Não posso escrever sobre o quotidiano se não tiver a consciência
da necessidade de o sustentar numa dimensão universal.
Um ser desumano pode não querer ser artista,
mas pode ser artista sem ter consciência.
(desculpe, foi sem-querer)
O que é a arte?
É indefinível.
Estou farto desta missão da qual peço a demissão.
(indeferido)
Há gente que escreve diários.
Ainda bem, têm sempre um motivo para o texto escrito.
É fácil,
é apenas descrever o que vai acontecendo, ram-ram no gerúndio.
Mas os diários não são arte,
embora às vezes possam parecer, mas aí já não é diário, diário íntimo.
E arte não é íntima, mas parece.
O diário é o verdadeiro lugar da mentira,
ninguém confessa a si próprio ou aos outros,
a autenticidade dos acontecimentos.
(«lier», como dizia Tennesse Williams)
Diário:
hoje, quando me levantei, senti tonturas e uma dor contínua no pescoço,
depois tomei o pequeno almoço, café da Colômbia e pão com manteiga de amendoim.
Fumei dois cigarros light enquanto lia as notícias.
Saí para a rua, as tonturas passaram, já nem me lembro se tinha ou não a dor no pescoço.
O que é uma dor no pescoço?
É indefinível.
O drama importuno está na escassez da energia.
Porque foi sugada até ao último lume sem se imaginar
a morte da criação.
A sincronização das heranças é que subleva a incapacidade
de produzir os bens mais essenciais da humanidade -
o plancton da alimentação física e psicológica.
Há gente que escreve diários.
Quando o Gonçalo me disse que tinha chegado ao fim da linha,
que tinha esgotado a alma até à última molécula,
sabia bem que já não tinha capacidade para improvisar.
E ficou-se por uma letargia galopante, até ao silêncio total.
(os sapatos já nem lhe serviam)
A escrita criadora devia ser obrigatória,
de tal modo que se pudesse confundir com a escrita pragmática e funcional.
A escrita energética é uma actividade burocrática só combatível através do improviso.
O improviso surge-me quando tropeço na lógica,
estende-se a toda a matemática humana desde um tal de Mileto.
(Θαλής ὁ Μιλήσιος)
Neste momento priveligio a expressão escrita, plástica e performativa.
Todas residem no corpo e centram-se nos movimentos da mão,
(como dizia Ernesto de Melo e Castro, cito: «quem máquina não tem à mão se vem»)
e da voz, também outra parte do corpo.
Este movimento é abrangente, enraíza-se em toda a erupção criativa,
uma espécie de magma absurdo da angústia
(eu acrescentaria existencial, à maneira de Sartre)
Há gente que escreve diários.
O Gonçalo relatou-me os últimos movimentos da mão,
quando o improviso se lhe morrera, antecipando a sua própria morte.
Contou-me também as diletâncias da juventude
onde improvisava o amor, a ira e a gula.
O mais difícil é inventar, aí nem o improviso vale.
O que é inventar?
É indefinível.
1 comentário:
Excelente.
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