1.
Na
escrita o difícil é integrar toda a experiência, factos, vivências e medir-lhes
o significado.
Como
sei se são relevantes, como dar o salto ou encontrar o caminho entre a
sinceridade e o confessionalismo?
Outra
questão: parar a corrente de consciência, uma vez que aquilo de que me lembro agora
é ultrapassado, momentos depois, por outros pensamentos. Não me refiro a
relatos de memórias, mas à valorização do presente, ou então a memórias muito
recentes.
Por
vezes interrogo-me se terei tido uma vida suficientemente intensa que mereça a
passagem para o papel. Depois vem a questão do destinatário, que até posso ser
eu próprio. De facto, o primeiro destinatário sou eu e só depois poderei pensar
no outro fora de mim.
Outra
questão é o pudor de mim próprio, que a ficção acaba por solucionar nas
terceiras pessoas. A invenção é o processo mais defensivo e uma escrita
defensiva não tem interesse nenhum, quer para mim quer para o outro.
Como seleccionar o presente como conteúdo?
Tenho lido escritos em que os relatos
pessoais por si só são literatura. Mas não é a literatura que agora me interessa,
interessa-me a escrita como documento significador.
A consciência da minha limitação é enorme,
devido aos factos que apontei. A minha relação com a escrita, a palavra
escrita, é a única significação intelectual da vida, intelectual no sentido de
inteligir.
Houve alturas, ainda não há muito tempo,
em que o uso da carta, confessional e utilitária, era literatura, sem ter sido
pensada ou programada para isso. Embora haja na carta sempre uma ideia de
posteridade. Estou a pensar nas cartas do tempo do Luiz Pacheco e do Cesariny,
e tantos outros, Virgílio Martinho, Victor Silva Tavares, centrando-me agora apenas
neste grupo e nesta geração. Hoje, a efemeridade do email não proporciona essa
dimensão, de modo algum.
A minha dúvida é se a literatura parou, ou
deixou de ser documento humano da interioridade e passe a ser apenas ficção – o
exterior - com mais ou menos enquadramento histórico.
Para mim, acho que descrever o quotidiano,
aquilo que observo, é fácil. Mas isso não é literatura, com mais ou menos
metáfora, sentido metafórico ou imagética tecnicista. A questão maior é saber
quando a mediocridade deixa de ser mediocridade e passa a ter uma dimensão
universal. Porque não há literatura sem universalidade.
Escrever bem é fácil, basta «escrever bem» e
observar, condicionado por tudo o que se observou. Grande parte das vezes, ou
quase sempre, imitando outros, ainda que com um toque pessoal.
A observação não se situa no olhar,
apenas. Situa-se no exterior através da viagem ao nosso interior para captar e
plasmar os sentimentos, aflições, sofrimentos e triunfos daqueles que nos
rodeiam ou que vamos encontrando. A peripécia, o pormenor do que vai
acontecendo é que dá a marca da dimensão literária.
Definir a literatura como
mistério é uma abordagem que não me interessa. Embora se possa simular o mistério e deixar que isso seja o emergir do génio do escriba.
Difícil é escrever coisas muito simples,
muito directas.
2.
No meio literário português, a maior intensidade
criativa aparece por meados do século
passado, com a chegada dos surrealistas, depois de andarem pelos textos
franceses a lerem Breton e outros. Esta
intensidade não tem significado apenas pelas suas produções, com uma nova
capacidade associativa fora do real, mas pelo facto de fazerem confinar os
neo-realistas ao seu próprio espaço. Esta reflexão tem pouco interesse, porque
existe vasta literatura e depoimentos sobre o assunto, ou pelo menos sobre o
essencial do assunto, depois de se ter editado todo um mundo de fofoquice e
intriga de maior ou menor importância, todos estes escritos enquadrados num
ambiente político.
A polémica e a fofoquice de hoje quase não
existe, pois os escritores centram a sua afirmação através da publicação dos
seus textos, movimentando-se em clubes fechados. Daquilo que eu conheço só
houve um grande movimento editorial alternativo, aquele que se prende com a
atitude – atitude editorial – de Victor Silva Tavares, principalmente na
&etc, e de outros que com ele
comungavam, comungam, certos princípios.
Refiro-me entre outros aspectos à concepção gráfica do livro e tudo que isso implica: quem o faz e como o faz, do escritor
ao editor, ao gráfico, ao paginador, ao tipógrafo-gráfico.
Mesmo assim, ainda antes do falecimento de
VST, já existiam experiências consequentes de edição alternativa, baseada nos
pressupostos que acabo de mencionar (talvez com a excepção da parte gráfica que,
inevitavelmente, não dispensa a impressão digital, técnica não aceite pelo
editor da &etc.). Algumas citadas por JME «Editoras indie, um roteiro para livros alternativos», (artigo
do Observador): Douda Correria, Do lado Esquerdo, Não-edições, Artefacto, Língua
Morta, Abysmo, Parsifal, Guilhotina, entre outras das referidas citações.
Dois anos após o fim da &etc esta
atitude continuou e está a solidificar-se. O próprio VST, nas edições mais
recentes, já abrira as portas da rua da Emenda a escritores mais jovens com propostas
bem diferentes daquelas que encheram as páginas uma meia dúzia de anos antes,
mas sempre com um sentido de aposta na inovação e experimentalismo, correndo os
riscos inerentes a uma eventual qualidade menor. Pressupõe-se aqui sempre uma
ideia nova e revolucionária «avant la lettre». Cheia de efeitos de eterno
retorno, dada a grande dificuldade de se fazer algo de novo, como sempre
aconteceu. Ninguém faz nada de novo, há antes um encadeamento que aproveita as
experiências e realizações anteriores. A nova
poesia não é nova, antes retoma o
surreal como novidade, escudando-se
na descoberta de associações novas
devido ao aparecimento de novos
campos vocabulares. A tentativa de criar o diferente é um mérito, mas a
ingenuidade das ditas novas descobertas é um demérito (e quem sou para juízos
de valor?) sem a consciência de que «já foi tudo feito».
A possibilidade de inovar pode é estar
associada à forma, sobretudo no que respeita a parte gráfica. Quando eu era
adolescente já um tipógrafo amigo me dizia «não se escreve só com letras,
escreve-se com os tipos de letra». É ingénuo também pensar que os conteúdos são
separáveis do grafismo, uma área em que a inovação é possível devido ao
permanente desenvolvimento tecnológico. Não se pode imaginar de outro modo a
criação do surreal - ao lado da ideologia - nas produções da poesia concreta e
experimental. E nem neste caso é totalmente novo, se tivermos em conta
experiências de um passado que não é longínquo, como é o caso da poesia visual barroca, daquela que Ana Hatherly, na sua investigação, mostrou e demonstrou em
«Claro e Escuro...». A ideologia (lembre-se que a poesia experimental foi
também um processo de tornear a censura, através do enigamatismo da mensagem), a
ironia e sátira aparecem também nesta práctica criativa poética em várias
publicações de Alexandre O’Neill. E já há mais de vinte anos que vi poemas
visuais em vídeo apresentados por E. M. Melo e Castro na Gulbenkian.
Entre nós, a maior produção situa-se em
meados dos anos sessenta, pertencendo a primeira publicação sobre o tema
justamente a Ana Hatherly, em artigo no Diário de Notícias, em 1959,
acompanhado por uma poema seu.
De resto o experimentalismo literário
formal apresenta-se aqui e ali, ao longo da história da literatura, não se
circunscrevendo, no passado, apenas ao barroco nem à produção dos anos
sessenta.
3.
A poesia é «fácil» de escrever, ao
contrário da prosa e da ficção em prosa, embora a ideia de prosa poética venha
baralhar um pouco os cânones e proporcione também um elevado grau de defesa.
A poesia permite um arcaboiço defensivo e
uma comunicação por códigos intrínsecos (os idiolectos dos autores), criando o
seu próprio universo, o que se vê quando emerge a identidade poética, afinal a
velha expressão o estilo, de «o estilo é o próprio homem», como
dizia o francês. No meu caso pessoal reconheço esse poder defensivo paralelo na
expressão plástica, uma criação em que a ligação com a realidade é, sobretudo, com
outra realidade. Basta ver os materiais
palpávies utilizados.
A poesia é «fácil» de escrever
principalmente para quem tiver intuição filosófica. Quanto à parte formal, de
execução técnica, aprenda-se em livros de instruções. A ficção não necessita do
sentido filosófico inerente à poesia.
Em ambos os casos é verificável, sempre, o
comprometimento com o mundo, com o outro,
e do escritor consigo próprio. É na abordagem filosófica que a linguagem da
poesia se apoia, embora se possa chegar à dimensão filosófica através do mero exercício
da linguagem, «aproveitando», por vezes, e por opção, certo automatismo mais ou
menos adquirido. Apenas porque o automatismo pode partir do inconsciente, ou de
uma infância, onde estes dois topos se encontram livremente e se misturam. Aqui
vencem as tendências surreais, presentes em toda a poesia que se considere como
tal, numa «poesis» original. Tudo resto é caldeirado pela cultura no sentido
sincrónico e diacrónico.
4.
As lutas ideológicas são necessárias à
arte da escrita. Ideológicas no sentido de se transformar e de se questionar o
lugar de onde se parte, o lugar por onde se passa e o lugar aonde se quer
chegar. Uma literatura que não se afirme por aquilo em que acredita e por marcas diferenciadoras não é nada que
valha a pena registar. Foi isto que me foi dado constatar nas chamadas tricas
literárias e editoriais, sobretudo as que apareceram em meados do século
passado, como acima referi, ainda que com algumas premissas ancestrais. Basta
lembrar as análises a posteriori que distinguem, em última análise, os
espíritos apolíneos dos dionisíacos.
Todas as teorias filosóficas, literárias e
linguísticas que se têm produzido são absolutamente inúteis, ainda que isso
sirva de satisfação aos produtores de análises quase sempre narcísicas,
experimentando uma legítima auto-satisfação, na sua ânsia de ensinar o outro,
de produzir uma pedagogia de circunstância.
A poesia, e a literatura, procura explicar
– filosoficamente – o sentido da vida e tem por objectivo a imortalidade, enquanto
diverte e entretém o outro nos tempos
livres. Com a primazia inicial para o entretenimento, pois foi assim que
começou, enquanto se comunicava com a dimensão divina, onde se situava, ou
situa, a vida e a morte. É essa a grande questão.
5.
A banalidade do quotidiano, a descrição
dos movimentos e dos actos sem significado aparente são também conteúdo e tema
literário. A questão que se coloca é saber quando esse quotidiano, cheio de
referências a lugares comuns, ganham poder comunicativo enquanto referentes.
Casos há em que esse mundo da banalidade, chamemos-lhe assim, tem pretensões de
atingir um valor por si só, muito longe da dimensão em que «tomar um café numa
esplanada» pode ser porta de abertura para uma dimensão artística. Essa
fronteira é difícil de delimitar, dependendo muito da contextualização na obra
de quem a traça, o que pressupõe uma análise não apenas do texto que vale por
si só, independente dos contextos e até de aspectos biográficos – isto é
«estava uma manhã de chuva e eu acendi um cigarro» tem valores diferentes para
um poeta «consagrado» e para um desconhecido sem obra que se conheça relevante.
Pessoalmente valorizo o texto-objecto em si, independentemente do autor e da
circunstância. De resto, nem todos os conteúdos coados por processos formais e
artificialismos salvam o poema. Há, no entanto, um mundo da banalidade, ou da «aurea mediocritas» do que pode ser tansformado numa dimensão épica ou poética.
6.
Para dar o exemplo pessoal, quando escrevi
a «Palavra Passe» tentei dar essa dimensão ao falar da «canalização» ou
apelo a alguém que me ponha uma fechadura na porta. Mas, segundo me recordo,
estas situações foram escritas com uma raiva interior muito intensa e
posteriormente buriladas num laboratório de escrita utilizando o tal livro de
instruções. O mesmo se passa com «Marias Pardas», mas neste caso ficcionei
personagens, num processo que sempre me acompanhou devido às minhas ligações
com o teatro, desde a escrita até à improvisação em expressão dramática. Melhor
dizendo, há um sentimento dramático que se prende com certas personagens-tipo,
ditas planas, o que não é o caso das personagens de «Marias Pardas», muito mais
elaboradas.
Essa ficção esteve sempre presente no
livro que considero com melhor acabamento e coerência, «Fugindo de todos os
fogos». Aqui, curiosamente, a ficção que acho mais «pura» encontra-se no conto
«O galope de Tordilho». É talvez o meu conto escrito com maior rigor. Pergunto
se o sentido metafórico do cavalo a fugir do fogo em liberdade é um modo de
falar de mim, embora escreva sobre um cavalo. Creio que não. Neste sentido, a
selecção dos referentes é o princípio da escrita.
Sobre a auto-análise das obras produzidas,
não nos esqueçamos da centopeia, que caminha naturalmente. Um dia, parou para
observar o seu movimento de patas e ficou de tal maneira confundida, que tombou
para o lado, perdendo a capacidade de andar.
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