O O’Neill desconcerta, desconserta
Vai uma pessoa ler um poema ou uma crónica e fica desarmada.
Ou porque ele ataca com a redondeza da palavra solta,
associada a outras que a fazem revelar,
ou porque fabrica palavras novas a partir das existentes.
Ou então porque traz para a prosa ou verso gentinha à míngua de inteligência-culta,
mas com o garbo da maledicência ingénua, a mostrar o outro lado das coisas.
Coisas em que nem tínhamos pensado, tão gastas as palavras reabilitadas agora, às vezes
com uma ternura subtil que nos penetra.
(como alguém disse da missão do escritor, não me lembro quem, dá um sentido novo às palavras da tribo, cumprindo até ao limite a sua função poética)
O O’Neill é a reabilitação do dito e redito, ao lado da fabricação do vocábulo novo,
associação livre da palavra como brinquedo desmontável.
Nas crónicas é o que se sabe, as vidinhas,
o quotidiano também reabilitado na prosa agridoce,
na permanente reabilitação, seja da palavra, seja do costume.
Como é possível, não sei.
Nasceu assim ou aprendeu o seu patoá nas ruas e noutros lugares?
Talvez as duas coisas, mas com um deslimite (palavra à maneira dele) interior
para embasbacar o transeunte, o leitor desprevenido.
De um candeeiro faz um poema se lhe mija um cão de perna alçada numa feira cabisbaixa.
E ainda lhe sobra tempo para trazer à cena ricos, pobres e remediados,
e a circulação do graveto em notas a que chama «retratos».
Parece um ladrão do pão.
O desconcerto fica nessa viagem parada, sentado em casa, no café,
no restaurante sem as andorinhas cheias da sua verbe atrevida.
Que pela vida faz ele, não o nega, precisa do dinheirinho o copywriter, há o amanhã e o
depois,
há mar e mar.
É uma revolução?
É, mas tão discreta, que só quem o quer ler se despista assim sem ser por nada.
Escrevo eu mais? Não, que isto é mais poema, não é crítica literária urbanizada.
Também ele no poema é mais livre e traz essa liberdade para a prosa,
tão poética no seu (re)fazer em liberdade os objectos surreais.
Aquilo que tão rápido se lê demora-lhe às vezes um tempão a fabricar, a consertar,
segundo diz nas entrevistas que lhe fizeram à laia de vende-bem.
Ele e o jornal que o quer exibir em montra fácil.
Ó Sr O’Neill, (ou Sôr Aníbal, como lhe chamava o Pipote) não me desculpo com as varizes,
pergunto-lhe só como lhe sai aquela fabricação de palavras,
registos ou filmagens incutidas ao comum dos (i)mortais.
É para os tornar incomuns ou é para prosseguir na sua singularidade desafiante?
É sincero nos enfoques espontâneos ou já vai com o ponto de mira programado
para esses tiros de alta precisão?
(está bem, eu faço as perguntas e dou as respostas que residem nas minhas próprias questões)
Olhar para o sapato de um cromo-transeunte aqui na minha frente
leva-me para lugares fantasiados,
leva-me até à origem do sapato, ao calcanhar desengonçado do portador dos calcantes.
É isso que o O’Neill lhes lê?
Será que o poeta sofre? Será que ele tem problemas tão insólitos quanto os meus?
E a fulana que toma um café no intervalo de ser cabeleireira
com uma expressão tão triste e tensa enquanto aspira o fumo?
No fundo, no fundo, o cómico é o trágico da vida,
é isso que leio no O’Neill. Se ele visse o adjetivo cómico associado a si,
havia de me desprezar com todas as dioptrias.
Nada daquilo é de rir, é de sorrir com a alegria de quem foi caçado à má fila,
com tristeza debaixo de olho, de ironia na ombreira.
Mas eu não sou figurante, figurantes são sempre os outros a quem tudo acontece,
eu sou incólume e não posso entrar em cena, embora também seja capaz de me rir de mim.
Da comédia à tragédia a diferença está apenas no tom,
é aqui que o poeta dá a volta e mostra o que é evidente,
absolutamente nas tintas para quem queira interpretá-lo,
mesmo que seja numa leitura louca e surreal de «O inventor do Submarino,
o H 327, um pequeno tubo de metal com rolha nas extremidades
e comandado por moscas.
Desenha bicicletas, um fotógrafo põe-lhe fumo na cabeça?
Dizem que se tolentina e se junqueira,
ele não, que não,
não olha de fora a pouca originalidade do medo,
vai para dentro e de lá abrange o pormenor e a paisagem.
Nem que vá de eléctrico.
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A título de exemplo, refiro, aleatoriamente, alguns termos e expressões criadas por Alexandre O’Neill, na maior parte na prosa publicada em jornais, nomeadamente em «A Capital», textos incluídos em «As andorinhas não têm restaurante» (cadernos D. Quixote, 1970) ; e outras incluídas em «Alexandre O’Neill, anos 70 poemas dispersos», ( Assírio & Alvim, 2009):
o guisalhar do trenó
Datuatia (como nome de personagem, a partire de da tua tia)
Tèlogomãe (substantivo correspondente a até logo mãe)
um soluço esgargalado
cuspinhou
mândrias (malandro)
brigões e anavalhantes
não-te-rales
grimpe e se amansarde (subida de planta sardinheira num prédio)
escaldaface (o chico todo escaldaface)
desforço de brutamare
carnificinagem
puto reguinga
urgentransmissão
ventrudo gesto abacial
malsetem (nas pernas)
malsemovia
agàcesar (HCESAR, teclado nacional, sinédoque de máquina de escrever)
jòniuoca (Johny Walker, uísque)
remembrança
retininte (do telefone)
eusèbiar (pontapear)
a campanuda calça (de Danilo, personagem)
prontavestir
diurtunamente (relacionado com diuturnidade)
aziático (de azia)
cintilintar (o peito a citilintar)
entre casasair e pontipicar (sair de casa e picar o ponto)
afli-aflição
vestibula (ele fica no vestíbulo)
tecnolírico
dizque-dizque (o que se diz)
fàznadão (que não faz nada)