domingo, 2 de junho de 2024

O desconcerto de O'Neill

 



O O’Neill desconcerta, desconserta

Vai uma pessoa ler um poema ou uma crónica e fica desarmada.

Ou porque ele ataca com a redondeza da palavra solta,

associada a outras que a fazem revelar,

ou porque fabrica palavras novas a partir das existentes.

Ou então porque traz para a prosa ou verso gentinha à míngua de inteligência-culta,

mas com o garbo da maledicência ingénua, a mostrar o outro lado das coisas.

Coisas em que nem tínhamos pensado, tão gastas as palavras reabilitadas agora, às vezes

com uma ternura subtil que nos penetra.


(como alguém disse da missão do escritor, não me lembro quem, dá um sentido novo às palavras da tribo, cumprindo até ao limite a sua função poética)


O O’Neill é a reabilitação do dito e redito, ao lado da fabricação do vocábulo novo,

associação livre da palavra como brinquedo desmontável.

Nas crónicas é o que se sabe, as vidinhas,

o quotidiano também reabilitado na prosa agridoce,

na permanente reabilitação, seja da palavra, seja do costume.


Como é possível, não sei.

Nasceu assim ou aprendeu o seu patoá nas ruas e noutros lugares?

Talvez as duas coisas, mas com um deslimite (palavra à maneira dele) interior

para embasbacar o transeunte, o leitor desprevenido.


De um candeeiro faz um poema se lhe mija um cão de perna alçada numa feira cabisbaixa.

E ainda lhe sobra tempo para trazer à cena ricos, pobres e remediados,

e a circulação do graveto em notas a que chama «retratos».

Parece um ladrão do pão.


O desconcerto fica nessa viagem parada, sentado em casa, no café,

no restaurante sem as andorinhas cheias da sua verbe atrevida.

Que pela vida faz ele, não o nega, precisa do dinheirinho o copywriter, há o amanhã e o

depois,

há mar e mar.


É uma revolução?

É, mas tão discreta, que só quem o quer ler se despista assim sem ser por nada.

Escrevo eu mais? Não, que isto é mais poema, não é crítica literária urbanizada.

Também ele no poema é mais livre e traz essa liberdade para a prosa,

tão poética no seu (re)fazer em liberdade os objectos surreais.

Aquilo que tão rápido se lê demora-lhe às vezes um tempão a fabricar, a consertar,

segundo diz nas entrevistas que lhe fizeram à laia de vende-bem.

Ele e o jornal que o quer exibir em montra fácil.


Ó Sr O’Neill, (ou Sôr Aníbal, como lhe chamava o Pipote) não me desculpo com as varizes, 

pergunto-lhe só como lhe sai aquela fabricação de palavras,

registos ou filmagens incutidas ao comum dos (i)mortais.

É para os tornar incomuns ou é para prosseguir na sua singularidade desafiante?

É sincero nos enfoques espontâneos ou já vai com o ponto de mira programado

para esses tiros de alta precisão?


(está bem, eu faço as perguntas e dou as respostas que residem nas minhas próprias questões)


Olhar para o sapato de um cromo-transeunte aqui na minha frente

leva-me para lugares fantasiados,

leva-me até à origem do sapato, ao calcanhar desengonçado do portador dos calcantes.

É isso que o O’Neill lhes lê?


Será que o poeta sofre? Será que ele tem problemas tão insólitos quanto os meus?

E a fulana que toma um café no intervalo de ser cabeleireira

com uma expressão tão triste e tensa enquanto aspira o fumo?


No fundo, no fundo, o cómico é o trágico da vida,

é isso que leio no O’Neill. Se ele visse o adjetivo cómico associado a si,

havia de me desprezar com todas as dioptrias.


Nada daquilo é de rir, é de sorrir com a alegria de quem foi caçado à má fila,

com tristeza debaixo de olho, de ironia na ombreira.

Mas eu não sou figurante, figurantes são sempre os outros a quem tudo acontece,

eu sou incólume e não posso entrar em cena, embora também seja capaz de me rir de mim.


Da comédia à tragédia a diferença está apenas no tom,

é aqui que o poeta dá a volta e mostra o que é evidente,

absolutamente nas tintas para quem queira interpretá-lo,

mesmo que seja numa leitura louca e surreal de «O inventor do Submarino,

o H 327, um pequeno tubo de metal com rolha nas extremidades

e comandado por moscas.


Desenha bicicletas, um fotógrafo põe-lhe fumo na cabeça?

Dizem que se tolentina e se junqueira,

ele não, que não,

não olha de fora a pouca originalidade do medo,

vai para dentro e de lá abrange o pormenor e a paisagem.

Nem que vá de eléctrico.

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A título de exemplo, refiro, aleatoriamente, alguns termos e expressões criadas por Alexandre O’Neill, na maior parte na prosa publicada em jornais, nomeadamente em «A Capital», textos incluídos em «As andorinhas não têm restaurante» (cadernos D. Quixote, 1970) ; e outras incluídas em «Alexandre O’Neill, anos 70 poemas dispersos», ( Assírio & Alvim, 2009):


o guisalhar do trenó

Datuatia (como nome de personagem, a partire de da tua tia)

Tèlogomãe (substantivo correspondente a até logo mãe)

um soluço esgargalado

cuspinhou

mândrias (malandro)

brigões e anavalhantes

não-te-rales

grimpe e se amansarde (subida de planta sardinheira num prédio)

escaldaface (o chico todo escaldaface)

desforço de brutamare

carnificinagem

puto reguinga

urgentransmissão

ventrudo gesto abacial

malsetem (nas pernas)

malsemovia

agàcesar (HCESAR, teclado nacional, sinédoque de máquina de escrever)

jòniuoca (Johny Walker, uísque)

remembrança

retininte (do telefone)

eusèbiar (pontapear)

a campanuda calça (de Danilo, personagem)

 prontavestir

diurtunamente (relacionado com diuturnidade)

aziático (de azia)

cintilintar (o peito a citilintar)

entre casasair e pontipicar (sair de casa e picar o ponto)

afli-aflição

vestibula (ele fica no vestíbulo)

tecnolírico

dizque-dizque (o que se diz)

fàznadão (que não faz nada)







terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Amor à sátira


 O humor é uma arma de arremesso, é agressão para diversão.

A sátira é feita de humor.

A sátira é de quem a produz também sobre si mesmo.


Na sátira imita-se a realidade, distorcendo-a, falseando-a.

Satiriza-se um político, um clérigo, um poeta, colocando-lhes

elementos insólitos no corpo, na roupa, nas palavras e nos tiques.

A sátira destrói – ou valoriza, glorificando – 

uma pessoa, uma personagem, um grupo, uma corrente sanguínea.

A sátira, escrita ou representada, é espectáculo.

O riso é uma forma de agressão, por isso no riso se mostram os

dentes, com destaque para os incisivos, arma incorporada para

morder e matar a presa. Ou para defesa.

Há macacos que, por medo, riem. A ameaça dos cães rosnando é um

riso.

A sátira é a criação de uma segunda realidade, que começa

dependente do objecto satirizado e depois se autonomiza.

Há mecanismos fisiológicos que provocam alívio e bem-estar pela

descarga de adrenalina própria do acto hepático de rir.


E também nas situações angustiantes: um sketch do Mr. Bean é

 inquietante e provoca ansiedade, pois há sempre uma derrocada pelo

falhanço e vigarice, depois ardilosamente compensados, e um

sofrimento em cadeia. O que alivia é um sucesso final conseguido

- expectável – do protagonista.

Tal como acontece com os clássicos Beny Hill ou Monty Python.

Com eles há uma sensação de perigo iminente, é o cómico como

reverso da medalha do trágico: veja-se, por exemplo, a velha série

televisiva Alô, Alô, com a guerra em pano de fundo e o risco da

«Resistência» ser apanhada.

Também o próprio Chaplin está sempre em perigo, a qualquer

momento pode cair, ser preso, espancado, ficar desempregado ou

perder o amor.

Outro exemplo de agressão contra a ortodoxia é a cena hilariante e

trágica – emblemática, esta - dos Monty Python:  Ministery of silly

 walks. Com o andar desengonçado de todas as personagens do

 sketch tudo se vai partir, desfazer - o ministério, as pernas, as

palavras, os gestos ou o chá que se desmorona com a secretária que o

serve.

O maior riso é provocado pelo alívio de ver nos outros aquilo que

 queremos que não nos aconteça, por exemplo, uma queda aparatosa,

que provoca riso, não apenas no mundo artístico, mas também na

 crueldade quotidiana.

Esconjura-se o mal tal como se esconjura a morte, «foi o outro que

morreu, não eu», o que por vezes origina grupinhos de riso e

anedotas privadas em velório de funeral.

A poesia satírica tem alguns pontos de contacto com estas situações,

quer no tradicional escárnio, quer nos comportamentos das

personagens-tipo-alvo. Ou nos tipos aperaltados de Nicolau

Tolentino «os outros é que são párias ignóbeis, não eu poeta 

(ou também «eu» pela parte que me toca?).


Ó Roque, com franqueza:

 

você nunca quis ver outros países?

- Bem queria, sr. O'Neill! E ... as varizes?

 


Quem tem varizes que o impedem de viajar é o Roque, não o

O’Neill, a quem apesar da ternura melancólica não se nega laivos de

crueldade fina: «Groselha na esplanada , bebe a velha»

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

O Jorge Sequerra

 Faz hoje sete anos que o actor Jorge Sequerra nos deixou.

Conheci-o numa leitura de passagens de Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, espécie de cronista do XVI. Lia ele então numa palestra, ou lançamento de livro, não me recordo, de Jorge Martins, um dos grandes investigadores da perseguição aos judeus em Portugal. Achei-o bastante expressivo, e envolvido, interiorizando a problemática judaica, afinal também as suas próprias raízes.
Mais tarde, e por indicação do meu amigo Jorge Martins, conheci-o no teatro "A Barraca" e pedi-lhe para ler um pouco do meu livro «Marias Pardas». Logo se prontificou a fazê-lo com a generosidade de quem anda ao mesmo.
Foi uma surpresa enorme quando me confrontei com o seu talento de homem de palco, com uma enorme sabedoria sobre os conteúdos que interpreta. Uma experiência marcante para mim, pela genialidade afectuosa da palavra do Sequerra, pela sensibiladde de encarnar uma personagem.
Leu um longo texto incluído no meu «Marias Pardas», no respectivo lançamento do livro publicado pela &etc em 2011.
Interiorizou e exprimiu os sentimentos de um homem que se dirigia à Marlene, uma das marias pardas deste livro, de prosa poética, digamos, com uma componente dramática, como é meu costume. Uma personagem com falas duras de homem perdido por uma vagabunda da noite, como ele, personagem sem nome referido.
O Jorge era um entertainer, queria comunicar a fantasia, tanto das personagens em questão, como levar o público aos mundos circenses que criava em pequenos palcos. Lembro-me de uma sessão no Braço de Prata em que nos entretinha com as palavras mais simples, improvisando, com pequenos truques de ilusionismo e fazendo participar o público com quem interagia.
No pouco, mas muito significativo contacto que tive com ele, aprendi muito, não sei explicar exactamente, nem como nem o quê. Lembro-me que na leitura de «Marias Pardas», praticamente sem preparação - ele dizia-me que ia descobrindo o texto enquanto o lia - pôs um boné na cabeça, e com um boné criou uma personagem, o boné concentrou uma encenação e uma máscara.
Tenho muitas saudades dele. Imaginei projectos para nós.
Faz sete anos que morreu, levando consigo a delicadeza, a ternura, o seu olhar de uma subtil tristeza que tantas vezes ofereceu a alegria.


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Entrevista à Revista Eufeme


 

A poesia é algo de intrigante e até misterioso. A sua existência é muito antiga e desde sempre existiu dúvidas quanto à sua própria definição. Algumas questões costumam ser pertinentes, tais como:

1. O que é poesia?
2. Para que serve a poesia?
3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

Quem melhor do que os poetas para definir poesia? Talvez possam não ser as explicações exactas sobre o tema, porém, são sentimentos, desassossegos e também misteriosas afirmações sobre a escrita poética que fascina o homem.

Falei com o poeta António Ferra sobre este tema:

1. O que é Poesia?

Quando me sinto atrapalhado para explicar uma coisa, vou à origem da palavra.
Neste caso, por mais voltas que dê, chego sempre ao acto da criação — 
poesis.
Não vejo a poesia, a palavra poética, como uma arte final.
Nasceu com a música, com o ritmo, com a cadência de espadeirar o linho, de perseguir as aves, de caminhar desbravando caminhos.
Por isso, passados estes milhares de anos, não dissocio a criação poética da música e do corpo.
Para mim, a poesia é dança numa concepção muito primitiva de movimentos vocais.
A poesia é universal, e essa universalidade não lhe vem das línguas divididas pela implosão de uma torre de Babel.
Vem de “um mover dos olhos” que nos leva a voar pelos céus criados na 
poesis.

2. Para que serve a poesia?
Também “é para comer”, como dizia a poeta. Mas serve ainda para alimentar os que residem fora de nós, porque o acto poético é sempre um 
eu-tu a preencher o vazio da fome. Se a palavra não servir para me transformar, a mim e ao outro, então não vale a pena o fingimento poético. Ficam apenas malabaristas de circo, porque se aniquila a liberdade criativa, o baloiçar arriscado no trapézio.
A poesia serve para acordar a liberdade adormecida dentro de nós, serve para deslaçar os nós que nos atam à palavra e se vai gastando com uso, correndo o risco de deixar de significar por falta de destino. A poesia serve como escola e escala de opções. De mudarmos pelo auto-conhecimento, e de exibir ao outro a liberdade de mudar. Ou não. A poesia serve sempre como exercício de liberdade na procura da verdade. Ou daquilo que cada um pensa ser verdade ao pensar a liberdade.

3. Será que só alguns podem ou conseguem ser poetas?

A resposta mais simples seria dizer as vulgaridades:
todos podem ser poetas
a inspiração é irmã do trabalho diário
lambam-se os versos como a ursa lambe os filhos,
(como dizia Sá de Miranda, pelo seu lado de poeta artífice)

A resposta à questão, prende-se com a relativização das coisas e dos object/os (ivos). Não existe um poeta, existem poetas, de maior ou menor dimensão, julgados e avaliados por parâmetros instituídos pelos poderes — do saber, da qualidade sociopoeticamente aceite, do dito bom-senso, do dito bom-gosto.
Não basta um poetastro sentar-se na esplanada e dizer que lhe dói a unha do pé porque uma pomba diáfana lhe entornou ice-tea nas calças.
Ou outro, que esgravata o absoluto, o sentido da vida, o silêncio de deus.
Por outras palavras mais comezinhas:

há para aí gente que não nasceu para a coisa
e outros que sim, nasceram poetas inspirados, mas às vezes falta-lhes
trabalhinho de sapa, garimpa de sílabas,
outros trabalham de sol a sol, mas falta-lhes a centelha.


domingo, 5 de dezembro de 2021

FUMO (plaquete, 2022)



FUMO - publicado em Novembro, 2022



    Cá chegou em boas condições o seu Fumo, em dia benfazejo.

Será que a dor do mundo encarnado no eu poético vive rodeada de incompletude , amputação, anormalidade e contrastes?
   E que padece da insensatez , da angústia dormente e da insónia diurna do mesmo eu, que, porém, prevalece sobre o gemer e o doer da gente pela junção do fumo ao fogo inicial e vivificador ?
   “ É”. 
    O conjunto afirma-se pelo que é, pela ausência e pela presença, pela acção e pela dormência , que permanece do nocturno doer . 
   Parabéns. 

M. C.

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     Cá recebi o seu "Fumo", sempre sugestivo . Temos que arranjar uma loção qualquer para fazer crescer as penas das aves e pensar em fumo de castanhas e de boas fogueiras contra o frio. Isto anda mal pelo mundo. Bem entendo a sua "ave sem penas".
 
     Abraço afectuoso
I L
 
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Caro António
Agradeço o fumo envolvendo oportunas palavras. Que sabedoria será necessário saber para olhar sem fascínio o voo arrogante dos corvos?
Abraço
C S  e M

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Caro, cá recebi na volta do correio o teu fumo, só possível a partir do teu fogo! Fumo não necessariamente negro como o corvo, até porque a toutinegra, ao contrário do que o nome faz supor, é...cinzenta! De qualquer dos modos está cá tudo: a insónia diurna e a noite a doer. Exercício difícil de síntese. (...)

M. M.

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Caríssimo Amigo,
Obrigado pela oferta da plaquete, que inclui poemas 
de grande talento literário, com surpreendentes diálogos
interiores .Parabéns!
Um abraço amigo e grato,
Fernando
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Caro António: Cheguei do Brasil e à minha espera esta o teu livro "Fumo" (Quinquagésimo quarto da ninhada). Lê-se depressa e devagar. Vê-se depressa e devagar. Li-o como um livro desencantado que fala de aves sem asas, sem penas, de voos sem rumo, da cinza do fumo e de uma noite a doer. Mas que fala também de manhã, de rio, de música e de fogo. Os dois (3?) textos são escritos por uma ave ferida que destina o seu voo ao nada, ao fumo sem fogo. Encobertos por este fumo funesto estão também as figuras da pintura. O teu livro pareceu-me escrito num caminho sem saída. Sem saída por "lá". Um livro triste que gostei de receber. Muito obrigado! Recebe um abraço sempre amigo do David.
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